O PAPEL DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA NA CONSTRUÇÃO DE NOVOS ESTILOS DE PENSAMENTO – ESTUDO DE CASO DO JORNAL/REVISTA MANUELZÃO
Márcia
Maria Martins Parreiras. Mestre em História. Coordenadora da Câmara Técnica de
Educação, Comunicação e Mobilização do Conselho de Bacia Hidrográfica do Rio
das Velhas. marciaparreiras@yahoo.com.br
Daniela
Campolina Vieira. Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Coordenadora do Subprojeto Manuelzão Comunidade / Projeto Manuelzão. danicampolina@gmail.com
Francisco
Ângelo Coutinho. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Educação. fac01@terra.com.br
A presente investigação insere-se nas temáticas de História
da Ciência, Divulgação Científica e Meio Ambiente. O objetivo geral do trabalho
é o de, apoiando-se no conceito de estilo
de pensamento, oriundo da espistemologia de Fleck (1986), compreender as contribuições
da principal publicação do Projeto Manuelzão: o Jornal/Revista Manuelzão, na
constituição de um novo estilo de
pensamento fundamentado na inter-relação saúde, meio ambiente e cidadania.
Em outras palavras, pretende-se compreender
a contribuição do Jornal/Revista Manuelzão para a construção de uma nova mentalidade
civilizatória, em detrimento da lógica higienista/antropocêntrica, proposta por
Meynne, em 1865, e inserida no Brasil por Oswaldo Cruz, a qual permaneceu, segundo
Polignano (2006) sem questionamentos mais consistentes no país até fins do
século XX; período em que se tornam mais incisivas as críticas ao modelo então
vigente.
Assim, pretende-se responder às seguintes questões
específicas: o Jornal/Revista Manuelzão tem se constituído em efetivo
instrumento para o processo de mudança da forma de se conceber, perceber, a
questão da relação saúde, meio ambiente e cidadania? Em caso afirmativo, de que
maneira, isto é, quais mecanismos tem utilizado? Qual público o jornal tem
atingido? De que modo este público tem sido impactado? Há indícios da adoção de
uma nova percepção, de uma transição entre ambas ou de manutenção da anterior?
Para tal estudo optou-se por utilizar como referencial
teórico de análise o conceito fleckiano de estilo
de pensamento, além de uma perspectiva de divulgação científica convergente
com a proposta por Melo, 1982. Tais abordagens, sobre a perspectiva de Fleck e
sobre o conceito de divulgação aqui assumidos, são apresentadas e justificadas
a seguir.
Ludwik Fleck (1896-1960), médico e filósofo polonês, foi um autor cuja
relevância das proposições teóricas paulatinamente assumiram papel importante
nas discussões de distintas áreas do conhecimento. A singularidade e relevância
de seu pensamento podem ser percebidas pelos autores que influenciou, dentre
eles Thomas Kuhn e Bruno Latour.
Um dos pilares da teoria fleckiana é o conceito de estilo de pensamento. Dentre as definições apresentadas pelo autor,
consideramos como bastante esclarecedora a seguinte: “Temos definido o estilo
de pensamento como a disposição para o perceber orientado e para a elaboração
correspondente do percebido.” (FLECK, 1986a:191, in PARREIRAS, 2006:47).
Em outras palavras, isso significa dizer que o estilo de pensamento implica
em um “perceber direcionado”, ou, nas palavras de MOULIN (1986), com a
expressão estilo de pensamento Fleck “(...) pretende apontar algo que
se parece com uma visão de mundo dentro de um campo.”. (MOULIN, 1986:407,
in PARREIRAS, 2006:48).
Além de direcionar o modo de ver e agir dos indivíduos, isto é,
referir-se à visão de mundo dentro de um campo, o estilo de pensamento possui uma segunda característica muito
importante: ele não é algo fixo. Portanto, o estilo de pensamento está susceptível a transformações temporais.
Isso ocorre, segundo Fleck, quando a chamada harmonia das ilusões do sistema
de opiniões é abalada.
No caso específico desta
investigação, pretende-se justamente compreender de que maneira o
Jornal/Revista Manuelzão tem contribuído para a transformação do estilo de
pensamento higienista/antropocêntrico para um novo, qual seja, focado na
interdependência entre saúde, meio ambiente e cidadania, isto é, uma concepção
sistêmica/ecológica. Dizendo de outro modo, pretende-se verificar como o
principal veículo de comunicação do Projeto Manuelzão tem comprometido o sistema
de opiniões até então prevalecente, e contribuído para a construção de um
novo, fundamentado em um distinto estilo de pensamento.
Especificamente, quanto ao
conceito de divulgação científica assumido neste trabalho, é importante dizer
da discussão apresentada por Nascimento (2008) sobre a real e necessária
polissemia do termo. Ela relata que vários autores, tais como Glória Kreinz (2006)
têm defendido a importância dessa polissemia, já que a adoção de uma única
definição para conceito de divulgação científica levaria ao risco de se
empobrecer o termo, limitando suas diversas possibilidades e manifestações. O
fundamental, neste caso, é que cada investigador tenha claro sua própria
perspectiva, a fim de tratar adequadamente seus objetos de análise.
Diante do exposto, para
fins deste trabalho, assumimos como conceito de divulgação científica, o
apresentado por José M. de Melo (1982), um dos principais jornalistas
científicos brasileiros. Em sua perspectiva, Melo destaca o papel educativo da
divulgação científica como fonte de conhecimentos para a superação de situações
problema do cotidiano de toda a população. Em convergência com Melo, Graça
Caldas (2003), diretora acadêmica da Associação Brasileira de Jornalistas
Científicos (ABJC), ressalta o papel educativo dos textos de divulgação
científica, mencionado por Melo, atribuindo a ele um significado ainda maior,
que seria o compromisso com a construção da cidadania da população em geral.
Segundo análise de Nascimento
(2008) os próprios cientistas que se ocupam da tarefa de divulgação científica “aproximam a ciência e divulgação científica
dentro de uma compreensão segundo a qual o acesso ao conhecimento científico –
feito por meio da segunda – permitira às pessoas uma emancipação individual e
racional, proporcionando a capacidade de decisão sobre sua própria vida”. (NASCIMENTO,
op. cit., p.58).
Em
termos gerais, é possível identificar sem maiores dificuldades o Jornal/Revista
Manuelzão como sendo um instrumento com as características apontadas por Melo,
Caldas e Nascimento. Tais elementos, quais sejam, o de permitir uma emancipação
individual e racional, constituir-se em veículo de conhecimento para superação
de situações problemas do cotidiano da população e de assumir um compromisso
com a construção da cidadania é que o tornam, no contexto deste trabalho,
objeto peculiar para análise como elemento importante no processo de construção
de um novo estilo de pensamento,
caminhando de concepções higienista/antropocêntrica para uma
sistêmica/ecológica.
O Jornal/Revista Manuelzão surgiu
imediatamente após a criação do Projeto Manuelzão, em 1997, quando seus
coordenadores sentiram a necessidade de ter um porta-voz. A primeira edição foi
publicada nove meses após a fundação do Projeto, tendo sido elaborada pelos
próprios coordenadores. Em 1999, após realização de parceria com o Departamento
de Comunicação Social da UFMG , a publicação passou a ser elaborada por
estudantes de jornalismo da universidade, sob orientação de professores da área.
Para o Projeto Manuelzão, segundo
Almeida (2006) o Jornal/Revista constitui-se em um meio de relações nas quais
não apenas a informação, mas aspectos tais como expectativas, regras, valores,
reflexões deveriam ser essenciais e inseparáveis da produção de notícias. A
tiragem do Jornal/Revista é irregular, mas geralmente trimestral, sendo a
distribuição gratuita ao longo de toda bacia do Rio das Velhas. Atualmente
todas as suas edições encontram-se também disponíveis no formato digital no site
do Projeto Manuelzão.
Para realização deste trabalho,
considerando os dezesseis anos de existência do Jornal/Revista Manuelzão,
optou-se por considerar a amostragem de um exemplar de cada ano, escolhido de
forma aleatória. O ano limite para esta análise foi o de 2007, uma vez que,
após estudo preliminar dos Editoriais, verificou-se singular prevalência de
argumentações em favor de mudanças do estilo
de pensamento higienista/antropocêntirco, nesta seção, nas publicações elaboradas
até o referido ano.
Assim, a fim de alcançarmos os objetivos propostos, foi realizada
a análise dos argumentos apresentados no texto do Editorial, de cada uma das
onze publicações selecionadas, verificando-se traços/características
constituintes do estilo de pensamento
direcionado à nova mentalidade civilizatória, fundamentada na perspectiva
sistêmica/ecológica, em oposição ao estilo
de pensamento higienista/antropocêntrico.
Com base nas análises
realizadas, foi possível identificar o emprego de termos e expressões recorrentes,
tais como “mudança de mentalidade”, “novo fundamento”, dentre outros similares,
associado a denúncias dos limites do sistema vigente, os quais corroboram para a
argumentação em favor da necessidade de mudança do estilo de pensamento. Em termos gerais, avaliamos que é justamente
nesta argumentação recorrente que está a contribuição da Revista/Jornal
Manuelzão para uma nova visão de mundo, na medida em que, nos termos
fleckianos, paulatinamente intensifica a fase
das complicações do estilo de
pensamento anterior, abalando a harmonia das ilusões do sistema de opiniões então vigente.
A segunda fase do trabalho
será desenvolver a análise das seções “Opinião” e “Manifestações”, a fim de se
identificar o público alcançado pelo Jornal/Revista Manuelzão, bem como, a
partir da análise do conteúdo destas seções, avaliar as possíveis influências
desta publicação sobre o estilo de
pensamento do referido público.
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